quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Baudelaire_UMA MÁRTIR DESENHO DE UM MESTRE DESCONHECIDO

Baudelaire
[Paris, 1821-1867]


UMA MÁRTIR     DESENHO DE UM MESTRE DESCONHECIDO



Pelo meio dos frascos, de estofos brilhantes
                E dos móveis voluptuosos,
Entre mármores e quadros, vestidos fragrantes
                Rojam plo chão, sumptuosos,

Numa tépida alcova onde, tal como a estufa,
                O ar é perigoso e fatal,
Onde os bouquets, morrendo em seus caixões de vidro,
                Exalam o seu sopro final,

Sem cabeça, um cadáver derrama, qual rio,
                Sobre a almofada já sem sede
Um sangue bem vermelho, pla tela bebido
                Com a avidez de um prado seco.

Semelhante às visões que se criam na sombra
                E que nos prendem sempre os olhos,
A cabeça, com o monte de sombrio cabelo
                E as suas jóias preciosas,

Na mesa de cabeceira, tal como um ranúnculo,
                Repousa; e, sem pensar em nada,
Um olhar branco e vago, tal como o crepúsculo,
                Escapa dos seus olhos em alvo.

Na cama o corpo nu, sem escrúpulos, expõe
                No abandono mais completo
A beleza fatal e o secreto esplendor
                Que lhe ofereceu a natureza;

Na perna, ornada de oiro, uma rosada meia
                Ficou-lhe como uma lembrança;
A liga, com um olho secreto e em chamas,
                Dardeja um olhar de diamante.



O aspecto singular daquela solidão
                E de um retrato langoroso,
Aos olhos provocantes como a sua pose
                Revela um amor tenebroso,

Alegrias culpadas e festas estranhas
                Cheias de beijos infernais,
Que enchiam de prazer o enxame dos maus anjos
                Entre as pregas dos cortinados;

E no entanto, ao ver a magreza elegante
                Daqueles ombros bem cortados,
A cintura fogosa e as salientes ancas,
                Tal como um réptil irritado,

É bem jovem ainda! – A sua alma exasperada
                E, gastos plo tédio, os sentidos
Ter-se-iam aberto à matilha açulada
                De errantes desejos perdidos?

O homem vingativo que não foste, em vida,
                Capaz de saciar com amor,
Satisfez nessa carne inerte e permissiva
                A imensidão do seu desejo?

Responde, impuro corpo! E plas rígidas tranças
                Como braços febris erguendo-te,
Cabeça assustadora, diz se ele nos teus dentes
                Quis colar o supremo adeus?

- Longe dos comentários, tão longe da turba
                E dos magistrados curiosos,
Dorme em paz, dorme em paz, estranha criatura,
                No teu sepulcro misterioso;

Corre mundo o teu esposo, e a tua forma imortal
                Vela junto dele quando dorme;
Tal como tu, decerto ele ser-te-á fiel,
                Sempre constante até à morte.
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Fonte, Urbano Tavares Rodrigues, os poemas da minha vida

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